domingo, 28 de novembro de 2010

Elegias de Duíno - Rainer Maria Rilke (3° Elegia/parte I)

TERCEIRA ELEGIA


Uma coisa é cantar a amada. Outra, ai de mim, é cantar o culpado e oculto Deus-Rio do sangue. Aquele que a amada reconhece de longe, seu amante, que sabe ele do Senhor da Volúpia que tantas vezes o assaltava em plena solidão, antes que a mulher amada o abrandasse, como se nem mesmo ela existisse? Como o deus emergia a irreconhecível face gotejante, invocando a noite para o delírio infinito! Oh, Netuno do sangue, com o hediondo tridente e o vento obscuro de seu peito, concha enrodilhada! Ouve como a noite se escava e se esvazia. Não se origina em vós, estrelas, o prazer que o amante respira no rosto da amada? A compreensão

[profunda de sua face pura, não a tomou ele das constelações tranqüilas?

Tu não foste, ai, sua mãe não foi, quem assim distendeu o arco espectante de suas sobrancelhas. Não foi ao teu encontro, jovem terna e sensível, que se animaram esses lábios numa expressão fecunda. Crês que assim o agitaria teu passo ligeiro, ó tu que te moves como a brisa da manhã? Apavoraste, entretanto, seu coração; antigos terrores nele despertaram a esse embate.


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Chama-o... Não podes arrancá-lo inteiramente ao convívio sombrio. Mas ele quer e se evade; abrandado, habitua-se à intimidade do teu coração e toma e se inicia. Porém, iniciou-se ele alguma vez? Mãe, fizeste-o pequeno, tu foste o seu início. Ele era tão novo... Inclinaste o mundo amigo para seus olhos novos e apartaste o que era estranho. Onde, onde estão os anos em que tua forma esbelta bastava para lhe ocultar o vacilante caos? Tantas coisas assim dissimulaste: a escuridão suspeita do quarto, tornaste inofensiva; de teu coração, refúgio pleno, um espaço mais humano retiraste, para uni-lo ao espaço de suas noites. Não nas trevas, mas em tua presença mais próxima pousaste a luz noturna, como luz de amizade. Nenhum ruído que não explicasses, sorrindo, como se há muito soubesses quando o pavimento assim se comportava. E ele ouvia, apaziguado, tal era o poder da tua suave permanência. Atrás do armário se ocultava, num manto enorme, seu destino e as desordenadas linhas do futuro inquieto, às dobras da cortina se amoldavam.

E quando ele jazia, o aplacado, sob cujas pálpebras sonolentas tua leve forma suavemente se perdia, parecia amparado... Quem impedia, porém, quem retinha


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