domingo, 28 de novembro de 2010

Elegias de Duíno - Rainer Maria Rilke (2° Elegia/Comentário/ 1°Parte)

SEGUNDA ELEGIA

Na segunda elegia Rilke define a situação existencial do homem, esse dissipador do próprio ser, em face do Anjo, cuja existência cerrada sobre si mesma é um símbolo de eternida­de. Abre o poema a mesma afirmação da primeira elegia: "Todo Anjo é terrível", cujo eco se prolonga como certos mo­tivos musicais de Beethoven que reaparecem, numa insistên­cia singular, em obras diferentes. Destruiu-se a cálida circulação entre o humano e o divino, essa cotidianidade do mila­gre que nos "tempos remotos de Tobias" aproximava o homem do mistério. Dilatou-se o hiato que nos separa das forças so­brenaturais e no torpor e esquecimento de nossa existência, não suportamos mais sem sucumbir à irrupção do divino. Como diz Angelloz, Rilke mostra-se nostálgico dos velhos tem­pos bíblicos, em que o Anjo era un compagnon de route et un guide. Em seguida, Rilke opõe o ser unitário do Anjo, espelho "cuja beleza reflui restituída à face que se contempla", à rea­lidade desfalecente do homem, cuja vida é uma perda inces­sante, uma exaustão de ser. O poeta denuncia a temporalidade que corrói todos os esforços humanos de realização e plenitude ontológicas: a beleza, os gestos de fervor, os impul­sos do coração, os momentos de êxtase e comunhão, tudo isto que é nosso, "flutua e desaparece". O próprio esforço de pen­sar e compreender não basta para nos subtrair a essa inquietante fluidez, isto é, não há salvação possível pelo conheci­mento. "Às vezes minhas mãos se reconhecem ou meu rosto

gasto nelas tenta se abrigar. Isto me dá uma certa consciên­cia de mim mesmo. Quem, no entanto, por tão pouco ousaria ser?"

E o poema prossegue: "Estará o mundo impregnado de nós. pois que nele nos perdemos?" O homem, e. particular­mente o homem criador, enriquece o mundo às suas expensas, como já afirmara Rilke num dos "Novos Poemas": "Todas as coisas às quais me dou, tornam-se ricas e me consomem". Num plano mais geral, podemos interpretar esses versos como caracterizando a condição do homem, cuja vida é ex-pressão, um fazer fora de si mesmo, um doar-se às coisas circundantes, sem recuperação possível. Daí a obsessão de Rilke pela imagem do círculo que se cerra sobre si mesmo e pelas fontes que ascendem para de novo cair e novamente ascender, ínte­gras, centradas em si mesmas. No entanto, às vezes, algo feito pelo homem foge à sua órbita precária, para habitar a pátria do Anjo que lhe outorga uma garantia mais alta de existência: é o caso não só das grandes criações artísticas que, arruinadas no plano do visível, se reconstituem, salvas enfim na retina preservadora do Anjo, mas também do amor dadivoso, sem liames no finito, cuja expressão máxima encontra­mos na figura das grandes amorosas. Entretanto, nas formas comuns do sentimento amoroso, nenhum intercâmbio se esta­belece entre o finito e o infinito "e tudo conspira para que silenciemos", vencidos pela distância e pela opacidade que nos separam desse espaço indizível, evocado nos versos finais da quinta elegia, onde os amantes ergueriam por fim suas "torres de alegria, suas trêmulas escadas que há muito se tocam onde nunca houve apoio". O contato físico, a sensualidade das mãos "que descobrem a riqueza dos anos de vinho", o amplexo e sua promessa de eternidade, são "provas" insuficientes de uma verdadeira comunhão. E à angústia da incomunicabilidade acrescenta-se, pois, a da inconsistência de toda aproximação física: quando os amantes pousam os lábios, uni no outro, "como taças, oh, como se evade então, estranhamente, o em­briagado".

Na última instância do poema, Rilke opõe a plenitude do mundo grego com suas virtudes apolíneas de medida e mode­ração, tão manifestas nos gestos sem peso das estátuas gregas, ao mundo fáustico, em que os corações desbordantes e insa­ciáveis já não se podem deter em sua paixão infinita. A pá­tria humana dos gregos que humanizavam até mesmo os pró­prios deuses, o seu equilíbrio dentro do mundo finito e auto-suficiente em que viviam, cedeu lugar ao desconforto do ho­mem que descobriu o infinito e o drama de sua existência exposta e ameaçada. Que harmonia é possível entre a torrente do vir-a-ser e a rocha do absoluto? Pudéssemos nós encontrar essa "estreita faixa de terra fértil, puramente humana, entre a torrente e a rocha!" Mas "nosso coração nos ultrapassa ainda como outrora", conclui o poeta, e lembramo-nos então da advertência de Nietzsche ao revelar que os gregos não desco­nheciam os sobressaltos e horrores da existência, mas tinham sido capazes de criar o "mundo médio" e apaziguante dos deuses olímpicos, "rosas florescidas em espinhoso matagal".

Nenhum comentário:

Postar um comentário