PRIMEIRA ELEGIA
No "Livro de Horas", Deus era vivido como um ser próximo, acessível, separado do homem apenas por uma tênue parede de idéias e de imagens. "Tu, Deus vizinho. . . Entre nós há apenas uma delgada parede." No entanto, nos anos transcorridos entre a publicação do "Livro de Horas" e o período da elaboração final das Elegias, processa-se uma profunda transformação espiritual no poeta, alterando-se radicalmente sua relação com a divindade: é como se a tênue parede se adensasse cada vez mais, impossibilitando qualquer contato ou comunhão entre Deus e o poeta, relegando-o a um desesperado insulamento. Rompe-se o sentimento confiante que aproximava a criatura do Criador, aquele contato caloroso com as raízes do Deus obscuro e, no entanto, presente. O espaço se dilata, se esvazia e nele se perde, sem resposta, o apelo humano. "Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?" É nesse espaço carente, de ausência e solidão, que se desenrola o lamento das Elegias. Entretanto, o sexto, sétimo, nono e décimo poemas do ciclo opõem vigorosamente, ao tom menor dos demais, acentos de exaltação e louvor, afirmando a consciência terrestre do homem e sua capacidade de superar a angústia e o desalento inerentes à condição humana.
Na primeira elegia, como observa Angelloz, há uma pre-figuração dos temas que integram as demais partes do ciclo, à maneira de uma peça musical cuja primeira frase anunciasse as variações subseqüentes: os temas da missão poética, do herói, das grandes amorosas e dos mortos precoces comparecem numa seqüência admirável de momentos poéticos, ao lado da concepção rilkeana do duplo domínio (Doppelbereich} da vida e da morte.
Encontramos o motivo polarizador da primeira elegia naquele verso inquietante: "Todo Anjo é terrível", onde se manifesta a tensão ameaçadora que marca a relação entre o homem e o Anjo, símbolo do que ultrapassa e transcende a esfera do visível. Não há, porém, repouso possível para o homem, ser fronteiriço que as formas terrestres não saciam e que, por outro lado, o amplexo do Anjo ameaça destruir em "sua existência demasiado forte". Nenhum abrigo lhe proporciona, entretanto, o horizonte racionalmente conhecido: "o intuitivo animal logo adverte que para nós não há amparo neste mundo definido". Nesta idéia do homem como ser ameaçado, desligado e estranho reside a afinidade profunda, apontada por Heidegger, da posição rilkeana com sua filosofia.
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