domingo, 28 de novembro de 2010

nas profundezas de seu ser os fluxos da origem?

Ah. não havia precaução no adormecido; dormindo,

a sonhar, febril, como se abandonava!

Ele, o novo, o perturbado, como se enredava

nas garras vegetais do vir-a-ser interior,

como se emaranhava em primitivas estruturas,

em formas que fugiam, bestiais, crescentes

e opressivas! Como ele se entregava! Amava.

Amava seu mundo interior, caos selvagem,

bosque antiqüíssimo e adormecido, sobre cujo

silencioso despenhar verde-luz, seu coração

se erguia. Amava. Abandonado, as próprias raízes mergulhou

na origem poderosa, onde sobrevivia seu pequeno nascimento.

Desceu, amando, ao sangue mais antigo ao abismo

onde jaz o Espanto, regurgitado pelos ancestrais.

E cada sobressalto o reconhecia e acenava, conivente.

Sim, o Horror sorriu-lhe... Poucas vezes com tal ternura

[sorriste,

mãe. Como não amaria ele o que assim lhe sorria? Antes de ti

ele o amou, pois quando o trazias, estava dissolvido

na água que torna mais leve a semente.

Não amamos como as flores, depois de uma

estação; circula em nossos braços, quando amamos,

a seiva imemorial. Ó jovem, amávamos em nós,



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não um ser futuro, mas o fermento inumerável;

não uma criança, entre todas, mas os pais,

ruínas de montanhas repousando em nossas

profundezas; e o seco leito fluvial das mães

de outrora; e toda a paisagem silenciosa,

sob o destino puro ou nebuloso: —

eis aqui, jovem, o que adveio antes de ti.

E tu mesma, que sabes? Conjuraste

no amado a pré-história obscura... Que

sentimentos, em seres desaparecidos agitaste!

Que mulheres, nele, te odiaram! Que homens

sombrios em suas veias jovens despertaste!

Crianças mortas para ti se volveram...

Oh, retoma diante dele, docemente,

uma tranqüila tarefa cotidiana — dá-lhe a paz

dos jardins e o contrapeso das noites...

Retém-no...

Elegias de Duíno - Rainer Maria Rilke (3° Elegia/parte I)

TERCEIRA ELEGIA


Uma coisa é cantar a amada. Outra, ai de mim, é cantar o culpado e oculto Deus-Rio do sangue. Aquele que a amada reconhece de longe, seu amante, que sabe ele do Senhor da Volúpia que tantas vezes o assaltava em plena solidão, antes que a mulher amada o abrandasse, como se nem mesmo ela existisse? Como o deus emergia a irreconhecível face gotejante, invocando a noite para o delírio infinito! Oh, Netuno do sangue, com o hediondo tridente e o vento obscuro de seu peito, concha enrodilhada! Ouve como a noite se escava e se esvazia. Não se origina em vós, estrelas, o prazer que o amante respira no rosto da amada? A compreensão

[profunda de sua face pura, não a tomou ele das constelações tranqüilas?

Tu não foste, ai, sua mãe não foi, quem assim distendeu o arco espectante de suas sobrancelhas. Não foi ao teu encontro, jovem terna e sensível, que se animaram esses lábios numa expressão fecunda. Crês que assim o agitaria teu passo ligeiro, ó tu que te moves como a brisa da manhã? Apavoraste, entretanto, seu coração; antigos terrores nele despertaram a esse embate.


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Chama-o... Não podes arrancá-lo inteiramente ao convívio sombrio. Mas ele quer e se evade; abrandado, habitua-se à intimidade do teu coração e toma e se inicia. Porém, iniciou-se ele alguma vez? Mãe, fizeste-o pequeno, tu foste o seu início. Ele era tão novo... Inclinaste o mundo amigo para seus olhos novos e apartaste o que era estranho. Onde, onde estão os anos em que tua forma esbelta bastava para lhe ocultar o vacilante caos? Tantas coisas assim dissimulaste: a escuridão suspeita do quarto, tornaste inofensiva; de teu coração, refúgio pleno, um espaço mais humano retiraste, para uni-lo ao espaço de suas noites. Não nas trevas, mas em tua presença mais próxima pousaste a luz noturna, como luz de amizade. Nenhum ruído que não explicasses, sorrindo, como se há muito soubesses quando o pavimento assim se comportava. E ele ouvia, apaziguado, tal era o poder da tua suave permanência. Atrás do armário se ocultava, num manto enorme, seu destino e as desordenadas linhas do futuro inquieto, às dobras da cortina se amoldavam.

E quando ele jazia, o aplacado, sob cujas pálpebras sonolentas tua leve forma suavemente se perdia, parecia amparado... Quem impedia, porém, quem retinha


Elegias de Duíno - Rainer Maria Rilke (2° Elegia/Comentário/ 1°Parte)

SEGUNDA ELEGIA

Na segunda elegia Rilke define a situação existencial do homem, esse dissipador do próprio ser, em face do Anjo, cuja existência cerrada sobre si mesma é um símbolo de eternida­de. Abre o poema a mesma afirmação da primeira elegia: "Todo Anjo é terrível", cujo eco se prolonga como certos mo­tivos musicais de Beethoven que reaparecem, numa insistên­cia singular, em obras diferentes. Destruiu-se a cálida circulação entre o humano e o divino, essa cotidianidade do mila­gre que nos "tempos remotos de Tobias" aproximava o homem do mistério. Dilatou-se o hiato que nos separa das forças so­brenaturais e no torpor e esquecimento de nossa existência, não suportamos mais sem sucumbir à irrupção do divino. Como diz Angelloz, Rilke mostra-se nostálgico dos velhos tem­pos bíblicos, em que o Anjo era un compagnon de route et un guide. Em seguida, Rilke opõe o ser unitário do Anjo, espelho "cuja beleza reflui restituída à face que se contempla", à rea­lidade desfalecente do homem, cuja vida é uma perda inces­sante, uma exaustão de ser. O poeta denuncia a temporalidade que corrói todos os esforços humanos de realização e plenitude ontológicas: a beleza, os gestos de fervor, os impul­sos do coração, os momentos de êxtase e comunhão, tudo isto que é nosso, "flutua e desaparece". O próprio esforço de pen­sar e compreender não basta para nos subtrair a essa inquietante fluidez, isto é, não há salvação possível pelo conheci­mento. "Às vezes minhas mãos se reconhecem ou meu rosto

gasto nelas tenta se abrigar. Isto me dá uma certa consciên­cia de mim mesmo. Quem, no entanto, por tão pouco ousaria ser?"

E o poema prossegue: "Estará o mundo impregnado de nós. pois que nele nos perdemos?" O homem, e. particular­mente o homem criador, enriquece o mundo às suas expensas, como já afirmara Rilke num dos "Novos Poemas": "Todas as coisas às quais me dou, tornam-se ricas e me consomem". Num plano mais geral, podemos interpretar esses versos como caracterizando a condição do homem, cuja vida é ex-pressão, um fazer fora de si mesmo, um doar-se às coisas circundantes, sem recuperação possível. Daí a obsessão de Rilke pela imagem do círculo que se cerra sobre si mesmo e pelas fontes que ascendem para de novo cair e novamente ascender, ínte­gras, centradas em si mesmas. No entanto, às vezes, algo feito pelo homem foge à sua órbita precária, para habitar a pátria do Anjo que lhe outorga uma garantia mais alta de existência: é o caso não só das grandes criações artísticas que, arruinadas no plano do visível, se reconstituem, salvas enfim na retina preservadora do Anjo, mas também do amor dadivoso, sem liames no finito, cuja expressão máxima encontra­mos na figura das grandes amorosas. Entretanto, nas formas comuns do sentimento amoroso, nenhum intercâmbio se esta­belece entre o finito e o infinito "e tudo conspira para que silenciemos", vencidos pela distância e pela opacidade que nos separam desse espaço indizível, evocado nos versos finais da quinta elegia, onde os amantes ergueriam por fim suas "torres de alegria, suas trêmulas escadas que há muito se tocam onde nunca houve apoio". O contato físico, a sensualidade das mãos "que descobrem a riqueza dos anos de vinho", o amplexo e sua promessa de eternidade, são "provas" insuficientes de uma verdadeira comunhão. E à angústia da incomunicabilidade acrescenta-se, pois, a da inconsistência de toda aproximação física: quando os amantes pousam os lábios, uni no outro, "como taças, oh, como se evade então, estranhamente, o em­briagado".

Na última instância do poema, Rilke opõe a plenitude do mundo grego com suas virtudes apolíneas de medida e mode­ração, tão manifestas nos gestos sem peso das estátuas gregas, ao mundo fáustico, em que os corações desbordantes e insa­ciáveis já não se podem deter em sua paixão infinita. A pá­tria humana dos gregos que humanizavam até mesmo os pró­prios deuses, o seu equilíbrio dentro do mundo finito e auto-suficiente em que viviam, cedeu lugar ao desconforto do ho­mem que descobriu o infinito e o drama de sua existência exposta e ameaçada. Que harmonia é possível entre a torrente do vir-a-ser e a rocha do absoluto? Pudéssemos nós encontrar essa "estreita faixa de terra fértil, puramente humana, entre a torrente e a rocha!" Mas "nosso coração nos ultrapassa ainda como outrora", conclui o poeta, e lembramo-nos então da advertência de Nietzsche ao revelar que os gregos não desco­nheciam os sobressaltos e horrores da existência, mas tinham sido capazes de criar o "mundo médio" e apaziguante dos deuses olímpicos, "rosas florescidas em espinhoso matagal".

Elegias de Duíno - Rainer Maria Rilke (2° Elegia/parte I)

SEGUNDA ELEGIA


Todo Anjo é terrível. No entanto, ai de mim, eu vos invoco, pássaros quase mortais da alma, sabendo quem sois. Tempos remotos de Tobias, em que o mais radiante dentre vós aparecia no limiar da casa humilde, sem intimidar, para a viagem levemente disfarçado; (jovem que outro jovem, curioso, contemplava). Adiantasse agora o Arcanjo, ameaça de trás das estrelas, um passo apenas para o nosso lado: no grande sobressalto destruir-nos-ia o próprio coração. Quem sois?

Precoces perfeições, vós, privilegiados, perfil dos altos cumes, cimos alvorecentes de toda criação — pólen da divindade em flor, articulações de luz, corredores, escadas, tronos, recintos da essência, escudos de alegria, tumultos de êxtases tempestuosos, e, subitamente solitários, espelhos cuja beleza reflui restituída à face que se contempla.

O sentir em nós, ai, é o dissipar-se — exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência nos desvanecemos. Alguma vez nos dizem: "circulas no meu sangue, este quarto, a primavera, estão cheios de ti". Inutilmente procuram nos reter.



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Evolamos. E aqueles que são belos, oh, quem os

deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto

e se dissipa. Tal o orvalho da manhã

e o calor do alimento, o que é nosso

flutua e desaparece. Ó sorrisos, para onde?

E tu, olhar erguido, fugitiva onda ardente e nova

do coração? Ai de nós, assim somos.

Estará o mundo impregnado de nós, pois que

nele nos perdemos? E os Anjos,

retomarão apenas o que deles emanou?

Talvez um pouco de humano se encontre às vezes

em seus traços, como o vago no rosto das mulheres

grávidas? Eles porém nada percebem,

no turbilhão da volta a si mesmos. (Como o saberiam?)

Se o soubessem, os Amantes diriam

estranhas coisas no ar noturno. No entanto, parece

que tudo nos oculta. Olhai, as árvores são; as casas

que habitamos, resistem. Somente nós passamos,

permuta aérea, em face de tudo. E tudo conspira

para que silenciemos: o pudor, ou

quem sabe que indizível esperança.

Amantes, que vos bastais, qual nosso segredo? Há contato entre vós. Teríeis provas?


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Às vezes minhas mãos se reconhecem ou

meu rosto gasto nelas tenta se abrigar.

Isto me dá uma certa consciência de mim mesmo.

Quem, no entanto, por tão pouco ousaria ser?

Mas vós, acrescidos no êxtase um do outro

— até que exausto, um suplique: basta! — vós,

cujas mãos descobrem a riqueza dos anos de vinho

e que vos dissolveis para que o outro domine,

pergunto-vos: qual nosso segredo? Eu sei,

bem-aventurado é vosso contato, pois

as carícias sutilmente protegem, retêm

a duração pura; e o amplexo, não vos promete quase

a eternidade? Quando resistis ao sobressalto

dos primeiros olhares, à ansiosa espera

à janela, ou quando ultrapassais

o primeiro passeio, juntos,

num jardim: amantes, sois vós ainda?

Quando um no outro pousais os vossos

lábios, como taças, oh, como se evade

então, estranhamente, o embriagado.

Admirastes nas esteias gregas a prudência

do gesto humano? O amor e o adeus sobre as espáduas

pousavam de leve, como se de outra matéria fossem

feitos, que nós desconhecemos. Lembrai-vos das mãos que,


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sem peso, se apoiavam, apesar dos corpos vigorosos. Senhores

de si mesmos, eles sabiam: aqui estamos,

em nosso palpável domínio; mais poderosamente

os deuses podem nos premir. Isso é assunto

dos deuses. — Ah, encontrássemos também nós

uma estreita faixa de terra fértil, puramente

humana, entre a torrente e a rocha!

Pois nosso coração nos ultrapassa ainda como outrora

e é impossível saciá-lo em figuras apaziguantes,

ou em corpos divinos que, imensos, o moderam.


Elegias de Duíno - Rainer Maria Rilke (1° Elegia/Comentário/2°Parte)

E Rilke passa a evocar tudo quanto exaspera o sentimen­to da solidão: o vento portador dos espaços cósmicos, a noite "ternamente enganosa" que vem ampliar a nossa acuidade ín­tima, tornando ainda maior o nosso desamparo. E nem mes­mo o amor liberta o homem desse confinamento essencial, pois os amantes apenas ocultam "um ao outro seu destino". Somente as grandes amorosas, essa plêiade de mulheres ar­dentes celebradas anteriormente nos "Cadernos de Malte Lau-rids Brigge", despojando o amor de todo caráter transitivo e dual, convertendo-o em anseio infinito, num lamento por um ser eterno, chegam, através dá doação plena de si mesmas, à transcendência anelada, como a flecha que ultrapassa 'Acorda, para ser no vôo mais do que ela mesma". Mas há outros ca­minhos e a tarefa poética é logo apontada em seu caráter de redimir as coisas efêmeras: "Sim, as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas queriam ser percebidas. . . Tudo isto era missão". E assim como os santos ouviam outrora o cha­mado de Deus, o poeta deve ouvir o apelo das coisas transitó­rias, essa música imperceptível gerada pelo silêncio. Tudo acena para o poeta, tudo é símbolo. Nas igrejas de Roma, diante de uma esteia funerária, ele ouve o apelo dos jovens mortos que aspiram se libertar da "aparência de injustiça que às vezes perturba a agilidade pura de suas almas". A morte precoce já é o cumprimento de um destino privilegiado e cabe ao poeta destruir a idéia de que a morte prematura é vida frustrada. Surge nessa instância do poema a importante in­tuição da grande unidade da vida e da morte, pois para Rilke os mortos não se ausentam da realidade. "Os vivos cometem o grande erro de distinguir demasiadamente bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem se caminham entre vivos ou mortos."/ Mediadores entre o homem e o mistério, os mortos ampliam o nosso sentimento do mundo e das coisas, tema que já dera sua mais bela floração em um dos "Novos Poemas": A morte da bem-amada.

A primeira elegia termina evocando as lamentações pela morte de Linos, deus adolescente do antigo culto grego da na­tureza: do luto e do desespero humano diante da morte teria brotado o milagre da música, fonte inesgotável de /'êxtase, consolo e amparo".

Elegias de Duíno - Rainer Maria Rilke (1° Elegia/Comentário/ 1°Parte)

PRIMEIRA ELEGIA

No "Livro de Horas", Deus era vivido como um ser pró­ximo, acessível, separado do homem apenas por uma tênue parede de idéias e de imagens. "Tu, Deus vizinho. . . Entre nós há apenas uma delgada parede." No entanto, nos anos transcorridos entre a publicação do "Livro de Horas" e o pe­ríodo da elaboração final das Elegias, processa-se uma profun­da transformação espiritual no poeta, alterando-se radical­mente sua relação com a divindade: é como se a tênue parede se adensasse cada vez mais, impossibilitando qualquer contato ou comunhão entre Deus e o poeta, relegando-o a um deses­perado insulamento. Rompe-se o sentimento confiante que aproximava a criatura do Criador, aquele contato caloroso com as raízes do Deus obscuro e, no entanto, presente. O espaço se dilata, se esvazia e nele se perde, sem resposta, o apelo humano. "Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?" É nesse espaço carente, de ausência e solidão, que se desenrola o lamento das Elegias. Entretanto, o sexto, sétimo, nono e décimo poemas do ciclo opõem vigorosamente, ao tom menor dos demais, acentos de exaltação e louvor, afir­mando a consciência terrestre do homem e sua capacidade de superar a angústia e o desalento inerentes à condição humana.

Na primeira elegia, como observa Angelloz, há uma pre-figuração dos temas que integram as demais partes do ciclo, à maneira de uma peça musical cuja primeira frase anunciasse as variações subseqüentes: os temas da missão poética, do herói, das grandes amorosas e dos mortos precoces compare­cem numa seqüência admirável de momentos poéticos, ao lado da concepção rilkeana do duplo domínio (Doppelbereich} da vida e da morte.

Encontramos o motivo polarizador da primeira elegia na­quele verso inquietante: "Todo Anjo é terrível", onde se ma­nifesta a tensão ameaçadora que marca a relação entre o ho­mem e o Anjo, símbolo do que ultrapassa e transcende a esfera do visível. Não há, porém, repouso possível para o homem, ser fronteiriço que as formas terrestres não saciam e que, por outro lado, o amplexo do Anjo ameaça destruir em "sua exis­tência demasiado forte". Nenhum abrigo lhe proporciona, en­tretanto, o horizonte racionalmente conhecido: "o intuitivo animal logo adverte que para nós não há amparo neste mundo definido". Nesta idéia do homem como ser ameaçado, des­ligado e estranho reside a afinidade profunda, apontada por Heidegger, da posição rilkeana com sua filosofia.

Elegias de Duíno - Rainer Maria Rilke (1° Elegia/parte II)

do objeto amado e superá-lo, frementes?

Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo

mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas

os santos ouviam, quando o imenso chamado

os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados

os prodigiosos, e nada percebiam,

tão absortos ouviam. Não que possas suportar

a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,

a incessante mensagem que gera o silêncio.

Ergue-se agora, paia que ouças, o rumor

dos jovens mortos. Onde quer que fosses,

nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz

de seu destino tranqüilo? Ou inscrições não se ofereciam,

sublimes? A esteia funerária em Santa Maria Formosa. . .

O que pede essa voz? A ansiada libertação

da aparência de injustiça que às vezes perturba

a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,

abandonar os hábitos apenas aprendidos, às rosas e a

outras coisas singularmente promissoras não atribuir

mais o sentido do vir-a-ser humano; o que se era,

entre mãos trêmulas, medrosas,



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não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome

como se abandona um brinquedo partido.

Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,

ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,

desligado. E o estar-morto é penoso

e quantas tentativas até encontrar em seu seio

um vestígio de eternidade. — Os vivos cometem

o grande erro de distinguir demasiado

bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem

se caminham entre vivos ou mortos.

Através das duas esferas, todas as idades a corrente

eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles

que se desabituam do terrestre, docemente,

como de suave seio maternal. Mas nós,

ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes

só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles

poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira

música para lamentar Linos, violentou a rigidez da

matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,

quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu

em vibrações — que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.